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Engasgando com o camelo
A evidência histórica para Jesus
Parte 3: A Religião da Palavra

A Palestina do século I era um caldeirão religioso e étnico, uma encruzilhada percorrida por muitos povos, crenças e culturas. Era também uma época de convulsão social - o ressentimento judaico contra o governo romano crescia, novas seitas despontavam em todo lugar, e a expectativa messiânica se elevara a ponto de virar uma febre.

Muitas novas religiões surgiram desta fermentação, mas a maioria delas se esvaneceu ou foram erradicadas por seus competidores ou pelas autoridades. Desta competição darwiniana, no entanto, houve uma nova fé que conseguiu sobreviver. Esta religião não soaria estranha a muitas pessoas vivendo hoje. Em seu núcleo era predominantemente judaica, acreditando no Deus de Abraão monoteísta e confiando, ao menos em parte, nas escrituras do Velho Testamento. Mas também se baseou em idéias do Platonismo grego, tais como a de que objetos no mundo material eram somente reflexos imperfeitos de objetos em um plano superior, celestial. E, o mais importante, também incorporou o conceito platônico do Logos.

Os platonistas enfrentavam um problema: assim como os judeus, eles acreditavam em uma divindade única, definitiva, possuindo toda a perfeição. Mas também acreditavam que o mundo material era composto de matéria imperfeita. Uma divindade perfeita não podia interagir diretamente com a imperfeição, e assim a solução deles foi o Logos, "palavra" em grego. Os platonistas viram o Logos como um agente da divindade - uma "emanação" do divino que podia agir como um intermediário entre Deus e o mundo. (Algumas tradições do Judaísmo descreviam um agente divino personificado similar, chamado de Sabedoria; ver Provérbios capítulo 8, por exemplo.)

A nova religião incorporou este conceito do Logos, com o qual dotaram o Filho após dividir a divindade judaica, anteriormente unificada, na trindade do Pai, Filho e Espírito Santo. Também se baseou nos ensinamentos éticos de um grupo de filósofos gregos chamados de Cínicos, bem como aspectos de cultos antigos e enigmáticos, as Religiões de Mistérios: o conceito de divindades que morriam e renasciam (de acordo com os ciclos da natureza), a idéia de uma refeição sacramental, e o conceito do sacrifício redentor. E finalmente, tocava na expectativa apocalíptica comum entre seitas radicais do século I, a crença de que o julgamento final e a chegada do reino de Deus chegariam a qualquer momento.

A religião que emergiu destes elementos discrepantes foi, é claro, chamada de Cristianismo. Uma ramificação do judaísmo messiânico, acreditava em um Filho de Deus chamado Jesus Cristo, co-eterno em poder e glória com o Pai, o agente da criação por quem todas as coisas materiais foram feitas e o instrumento da redenção da humanidade. Ele foi crucificado, e no seu sofrimento e subseqüente morte tomou para si os pecados da humanidade, oferecendo seu sangue como pagamento por nossos crimes, e depois de três dias ressuscitou e tomou seu lugar junto ao Pai. Jesus foi a fonte da sabedoria, o messias há muito aguardado, um "mistério" divino cuja chegada fora profetizada por e escondida nas escrituras do Velho Testamento, e viria a ser o juiz da humanidade quando o fim dos tempos chegasse. No fim das contas, era muito similar ao que os cristãos crêem hoje - exceto por um detalhe ínfimo.

Este Jesus jamais esteve na Terra.

Os primeiros cristãos criam em um redentor espiritual, um ser celestial cuja crucificação, morte e ressurreição ocorreram não na Terra, mas em um domínio platônico superior. Este Jesus jamais encarnou em uma forma humana.

Este era o Cristianismo dos primeiros cristãos, no caso os escritores das epístolas do Novo Testamento (as quais se concorda amplamente que precedem os evangelhos). Este é o Jesus em que Paulo acreditava e sobre quem escreveu em suas cartas.

Obviamente, isto não é amplamente reconhecido pelos cristãos hoje. Isto porque a maioria deles lê a Bíblia com o que o estudioso do NT Earl Doherty chama de "lentes evangélicas" - eles sabem das histórias do evangelho de um Jesus histórico, e assim eles inconscientemente lêem as epístolas com elas em mente, assumindo que Paulo estava falando sobre o mesmo Jesus que os evangelhos descrevem. No entanto, se analisarmos as epístolas em si mesmas sem fazer este pressuposto, um número de versos se destacam - anomalias que não se encaixam com a visão de que Paulo acreditava em um Jesus histórico, mas que se encaixam com o cenário alternativo descrito acima. Alguns dos mais significantes destes versos estão listados abaixo:


Romanos 8:26
"Do mesmo modo também o Espírito nos ajuda na fraqueza; porque não sabemos pelo que havemos de orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inexprimíveis."

De acordo com Paulo, os cristãos não sabem como orar. Mas como poderia qualquer um que tivera qualquer familiaridade com os ensinamentos de Jesus dizer isto? O que aconteceu com o Pai Nosso? Paulo não o conhece? Se ele sabe tão pouco sobre o que Jesus disse e fez que ele jamais ouvisse falar disso, então seria ele qualificado para estar escrevendo uma porção significativa do Novo Testamento?

Por outro lado, se os primeiros cristãos acreditavam em um Jesus espiritual, esta anomalia é imediatamente esclarecida. A razão pela qual Paulo não sabe sobre o Pai Nosso é porque nenhum Jesus humano jamais o ensinou para ninguém - é muito provavelmente uma invenção dos evangelistas, que não surgiria a não ser décadas após sua época.

Romanos 13:3-4
"Pois os governantes não devem ser temidos, a não ser pelos que praticam o mal. Você quer viver livre do medo da autoridade? Pratique o bem, e ela o enaltecerá. Pois é serva de Deus para o seu bem. Mas se você praticar o mal, tenha medo, pois ela não porta a espada sem motivo. É serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal."

Esta é uma declaração realmente bizarra, considerando quem a está dizendo. Paulo está realmente dizendo que os bons nada têm a temer das autoridades - Paulo, seguidor de uma religião que foi fundada por um homem que foi preso injustamente, culpado injustiçadamente, e entregue a uma morte imerecida, tudo isso pelos governantes da época? Ninguém que soubesse qualquer coisa dos evangelhos poderia ou iria dizer tal coisa.

Mas as implicações deste verso vão além do que Paulo sabia ou não sobre a vida de Jesus. Ainda que não soubesse de um Jesus histórico, se o povo a quem ele estava escrevendo soubesse, iria furiosamente rejeitar este verso como uma gritante contradição com os fatos. Romanos jamais seria aceito como cânone. E mesmo assim foi. A única explicação é que nem Paulo, nem ninguém da primeira comunidade cristã, acreditavam em um Jesus que um dia estivera na Terra, e assim poderiam escrever ou ler isto sem soar insensível a seus ouvidos.

1 Coríntios 9:1-2
"Não sou livre? Não sou apóstolo? Não vi Jesus Cristo, nosso Senhor?"

Neste verso, Paulo está tentando refutar aqueles que questionam sua autoridade apostólica. "Não vi Jesus Cristo, nosso Senhor?", ele pergunta. Bem, o problema é que, ele não viu - ao menos não em forma humana. Em lugar nenhum a Bíblia afirma que Paulo um dia encontrou o Jesus de carne e osso, pré-ressurreição. Atos capítulos 9 e 22 descrevem a conversão de Paulo na Estrada de Damasco, e ambos deixam claro que esta, a única vez que ele viu Jesus, foi uma visão, em forma espiritual. É esta visão que ele evoca para justificar sua autoridade.

Mas o problema é este. Se Paulo viu Jesus somente em uma visão, enquanto havia outros que realmente viram o Jesus homem, que andaram com ele, que o tocaram, que o ouviram falar - não seria o contra-argumento natural que a autoridade de Paulo não é assim tão grande quanto a desses outros? Não seria este um argumento a ser tão repetidamente usado contra ele, que ele seria portanto forçado a responder?

E apesar disso, ele não o responde; ele não dá sinal algum de que isto era sequer um problema. Não há uma pista aqui de que qualquer outra pessoa afirmasse que seu conhecimento de ou seu relacionamento com Jesus seja em qualquer aspecto superior ao seu. E isso, é claro, implica que as "visões" de Jesus de todos os demais eram também inteiramente espirituais por natureza.

1 Coríntios 15:47
"O primeiro homem, sendo da terra, é terreno; o segundo homem é o Senhor do céu."

Esta passagem parece inócua à primeira vista, mas lendo-a no contexto existem algumas poderosas implicações a serem extraídas. Paulo diz que Adão, o primeiro homem, é "da terra", i.e., possuía um corpo material. Jesus, por outro lado, é o "último Adão", e por contraste, era um "espírito vivificante" (de acordo com verso 45). O contexto do verso é sobre o Arrebatamento; Paulo está dizendo que corpos de carne e osso não podem herdar o reino de Deus, mas depois da assunção, os que crêem obterão corpos novos, espirituais, assim como o corpo de Jesus. (compare o verso 49, continuando a metáfora iniciada acima: "E assim como trouxemos a imagem do terreno, traremos também a imagem do celestial.")

Há um problema, entretanto. Em lugar nenhum Paulo especifica que está falando sobre o corpo de Jesus depois da ascensão. Este é um ponto que ele deveria ter feito, porque enquanto que na Terra Jesus tivera um corpo falível e mortal como o de todo mundo - ele ficou faminto, cansado, vulnerável; comia, dormia, sentia dor, sofreu e morreu - e esse não é o tipo de corpo que os crentes iriam ter. Esta omissão arruinaria completamente o ponto que ele está tentando passar. Por que ele está em silêncio sobre essa crucial distinção?

A teoria do Jesus espiritual, por outro lado, esclarece isto instantaneamente. Paulo refere-se somente ao corpo celestial e imortal de Jesus porque é o único tipo de corpo que ele sempre concebeu que Jesus possuísse.

2 Coríntios 5:5-7
"Foi Deus que nos preparou para esse propósito, dando-nos o Espírito como garantia do que está por vir ... Porque vivemos por fé, e não pelo que vemos."

Que presente Deus deu aos seus seguidores para torná-los "sempre confiantes" de que terão obtido a vida eterna? Paulo diz às claras - ele enviou o Espírito Santo a eles.

O silêncio aqui deveria ser ensurdecedor. Por que Jesus não é mencionado neste verso? Como é que Paulo falharia em conceber o Filho encarnado como o primeiro e mais importante emissário de Deus na Terra? Cristo nem sequer merece uma menção aqui? Paulo fala como se a única razão pela qual os crentes confiam que serão um dia ressuscitados em forma glorificada é a presença intangível do Espírito Santo - falhando completamente em mencionar Jesus, ainda que os evangelhos digam que muitos crentes o viram se submeter a este mesmo processo.

O verso 7 é não menos revelador. Paulo diz que ele e seus companheiros cristãos "vivem pela fé, não pelo que vemos.". Como é que ele diz uma coisa dessas? Ele ignora o fato de que havia centenas, senão milhares de pessoas que viram Jesus com seus próprios olhos, que o ouviram com seus próprios ouvidos, que o tocaram, testemunharam seus milagres e sua ressurreição, e foram curados por ele? Por que ele se expressa como se a existência de Jesus não fosse uma questão de evidência, mas sim de fé? A teoria do Cristo espiritual explica isto perfeitamente, enquanto que sob a concepção historicista isto é, no mínimo, uma séria anomalia.

Efésios 3:4-5
"Por isso, quando ledes, podeis perceber a minha compreensão do mistério de Cristo, o qual noutros séculos não foi manifestado aos filhos dos homens, como agora tem sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas"

Se Hebreus 8:4, discutido abaixo, é o indício máximo que aponta para a natureza original espiritual de Cristo, este verso é igualmente convincente. O escritor diz claramente que o conhecimento de Jesus Cristo chegou aos apóstolos através do Espírito Santo.

Como é que isto pode se encaixar com o registro dado pelos apóstolos? Como o escritor de Efésios não pôde conceber o conhecimento de Jesus como tendo surgido através de, bem, Jesus? Ele não contou a seus discípulos quem ele era e o que viera fazer? Por que este verso representa esse conhecimento como tendo vindo apenas através de uma revelação dada pelo Espírito Santo?

Sob a teoria alternativa, a resposta é óbvia. O conhecimento de Jesus veio através da revelação porque era a única fonte de conhecimento de Jesus. Jamais houve um Cristo humano que contou qualquer coisa a alguém.

Hebreus 8:4
"Ora, se ele estivesse na terra, nem tampouco sacerdote seria, havendo ainda sacerdotes que oferecem dons segundo a lei"

Um verso aterrador, e que pode muito bem ser considerado o indício máximo provando que os primeiros cristãos não acreditavam em um Jesus humano e histórico. Hebreus capítulos 8 e 9 discutem o pacto de sacrifício entre Deus e homem. O escritor está comparando o tabernáculo judaico, onde o sumo sacerdote faz sacrifícios de sangue de animais a Deus dentro do coração do santuário, com o "maior e mais perfeito tabernáculo" (9:11) do Céu, onde Jesus oferece o seu próprio sangue dentro do santuário celestial como um sacrifício mais perfeito a Deus. O tema subjacente aqui é claramente um platônico: ações humanas na Terra espelham as ações divinas no Céu, o mundo material imperfeito refletindo o mundo divino perfeito.

À medida que o escritor de Hebreus constroi esta analogia, ele menciona, quase que de passagem, que se Jesus estivesse na Terra, ele nada teria a fazer, porque já houve sacerdotes aqui oferecendo sacrifícios. O papel de Jesus foi somente no Céu, onde ele poderia oferecer seu sangue como um sacrifício melhor.

Mas como é que poderia qualquer escritor que conhecia um Jesus humano ter dito isto? Como ele pôde ter negligenciado o fato estrondosamente óbvio de que Jesus tinha um propósito na Terra, que de fato ele teve que vir aqui precisamente para realizar este propósito? Por que ele parece pensar que a oferta de Jesus do seu próprio sangue tenha acontecido exclusivamente no Céu?

Do ponto de vista do evangelho, isto é impossível de explicar. Do ponto de vista do Jesus espiritual, é muito fácil, e de fato se encaixa perfeitamente, como a chave na fechadura, com o cenário que este ensaio promove.

Hebreus 10:37
"Porque ainda um pouquinho de tempo, E o que há de vir virá, e não tardará."

Cristãos deveriam achar estranho que este verso descreve Jesus como "aquele que virá". Esta é a forma mais natural de passar a ideia que isto será um retorno? Não deveria o escritor de Hebreus ter dito algo como "aquele que veio voltará"?

Naturalmente, isto é o que o escritor teria dito se soubesse de um Jesus histórico. Mas sob a teoria alternativa, nunca se acreditou que Jesus teria estado na Terra. Em vez disso, acreditava-se que ele viria a Terra no apocalipse, para ser o juiz do fim dos tempos. Isto é exatamente o que encontramos neste verso. Este escritor diz, em efeito, que Jesus jamais estivera na Terra; em vez disso, ele nos conta, Jesus "virá" em "um pouquinho de tempo". Isto é mais do que apenas um silêncio - é uma declaração positiva que exclui qualquer encarnação terrena.

Hebreus 12:15-16
"Tendo cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus, e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e por ela muitos se contaminem. E ninguém seja devasso, ou profano, como Esaú, que por uma refeição vendeu o seu direito de primogenitura."

Este silêncio deveria estar além do que se possa acreditar. O autor de Hebreus está tentando dar um exemplo de uma "raiz de amargura" crescendo na comunidade, um homem caindo da graça de Deus e causando sofrimento a muitos. Quem podia ser um exemplo mais óbvio do que a figura evangélica de Judas, o arquetípico traidor que, ciumento e enganador, vendeu o filho de Deus a uma morte injusta e tortuosa por trinta moedas de prata?

Mas não. O melhor que o autor de Hebreus pode fazer é com a figura de Esaú, do Velho Testamento. Não é a venda da vida de Jesus por prata que salta a sua mente, mas sim a venda de um direito de primogenitura por uma refeição. Ele era completamente ignorante da história do evangelho? De que outra forma pode se explicar seu comportamento - ignorar o exemplo óbvio e perfeito exatamente do mesmo ponto que estava tentando passar em favor de outro muito mais distante e menos aplicável? Esaú tinha um motivo: ele não era amargo, estava passando fome. Já Judas não tinha essa desculpa.

Tiago 5:6,10-11
"Condenastes e matastes o justo; ele não vos resistiu... Meus irmãos, tomai por exemplo de aflição e paciência os profetas que falaram em nome do Senhor. Eis que temos por bem-aventurados os que sofreram. Ouvistes qual foi a paciência de Jó, e vistes o fim que o Senhor lhe deu; porque o Senhor é muito misericordioso e piedoso."

Outro silêncio inacreditável. Tiago está tentando dar exemplos de homens de Deus que permaneceram pacientes e inabaláveis perante o sofrimento, perseguição e até a morte, mas o melhor que ele consegue é trazer a figura de Jó, do Velho Testamento.

Onde está Jesus? Onde está o homem que se afirmava ser o irmão de Tiago? O que aconteceu com ele neste verso? Teria Tiago, o Justo, prontamente esquecido a imagem evangélica de Jesus permanecendo paciente e inabalável quando os senhores judeus o interrogavam, quando os soldados romanos o debochavam e chicoteavam, quando foi forçado a carregar o instrumento de sua própria morte morro acima, no Calvário, enquanto sangrava pela surra? O que poderia ser um exemplo melhor exatamente da mesma coisa que ele está tentando passar do que o comportamento do próprio Filho de Deus nessa mesma situação? Por que ele não faz esta mais óbvia de todas as conexões?

Assim como no verso de Hebreus acima, o autor de Tiago busca um exemplo e ignora uma história recente e perfeita dos evangelhos que traz um paralelo exato do ponto que ele estava tentando passar, em favor de uma fábula muito menos relevante do Velho Testamento. (ao contrário de Jesus, Jó eventualmente perdeu sua paciência face ao sofrimento e desafiou Deus a se explicar). Isto só pode ser explicado se o escritor não conhecesse nenhuma história do evangelho, porque essas histórias jamais aconteceram.


Estes versos não formam o total daqueles que trazem dúvida sobre a teoria historicista; de fato, há versos como este a serem encontrados em cada epístola do Novo Testamento. Uma discussão abrangente deles está além do escopo deste ensaio; no entanto, o historiador Earl Doherty compilou uma lista completa que pode ser encontrada em seu site, The Jesus Puzzle, na seção "The Sound of Silence". Ele também lida minuciosamente com versos de epístolas que podem ser interpretados como referindo-se a um Jesus histórico, também na mesma seção.

Estes versos, assim como muitos outros, mostram que os primeiros cristãos não tinham a história do evangelho em mente quando pegaram papel e caneta. Jamais citaram Jesus diretamente. Não dão nenhum detalhe biográfico sobre sua vida exceto aqueles predeterminados pelas profecias do Velho Testamento. Nunca falam do local de sua morte e ressurreição, em qualquer lugar ou momento físico, nem demonstram o menor desejo de visitarem nenhum dos lugares em que ele supostamente vivia e andava. Quando tentam descrever sua crucificação, muitas vezes recuam e simplesmente citam o Velho Testamento. Apesar deles frequentemente dizerem coisas muito similares aos próprios ensinamentos éticos de Jesus, eles invariavelmente deixam de atribui-los especificamente a ele. Estas omissões são profundas demais para serem descartadas ou negadas; esta é uma séria anomalia sistemática que exige uma explicação.

Por que este devastador silêncio dos escritores das epístolas quando se trata do homem a quem amavam e veneravam, aquele que causou uma impressão tão enorme neles apenas alguns anos antes? Não é natural que pensamentos dele dominassem suas mentes, de forma que achariam uma forma de trabalhar em detalhes sobre ele e seus ensinamentos em tudo que dissessem? Mas os apologistas querem que acreditemos que imediatamente após a ressurreição e ascensão do glorioso professor que mudara suas vidas para sempre, ele imediatamente recuou para um segundo plano, tornando-se nada mais do que uma sombra, uma figura distante desencarnada de toda a memória recente e vagando ao longo de metáforas misteriosas e obtusas. Isto é extremamente improvável no cenário do Jesus histórico, porém é exatamente o que deveríamos esperar de um cenário de um Jesus mítico.

O mais interessante de tudo é que este retrato não se encerra com as epístolas. À medida que progredimos ao século II em diante, vemos que vários dos primeiros apologistas cristãos aparentemente compartilham estas visões de um Cristo espiritual.


Teófilo da Antioquia

Tome, por exemplo, Teófilo, bispo da Antioquia na década de 160. Sua defesa da fé para um pagão está preservada no tratado intitulado Para Autólico.

Teófilo se identifica como um cristão, mas suas crenças parecem ser radicalmente diferentes da visão dos cristãos modernos. Ele jamais menciona Jesus Cristo. Ele tem muito a dizer sobre o Filho de Deus, o Logos, a Palavra - o agente de Deus da criação e seu intermediário com o mundo - mas em lugar nenhum ele diz que esta força cósmica jamais encarnou em um corpo humano. De fato, quando foi perguntado sobre o sentido da palavra "cristão", ele responde: "[Alguém que é] ungido com o óleo de Deus", e diz que os cristãos possuem conhecimento através de revelação, enviada pelo Espírito Santo. Quando perguntado como se obtém a vida eterna, ele diz que ela vem ao se obedecer aos mandamentos de Deus, deixando de mencionar qualquer conceito de um sacrifício redentor. Mesmo quando Autólico o desafia, "Mostre-me sequer uma pessoa que tenha ressurgido dos mortos!", ele fica calado, não mencionando nem Lázaro, nem a filha de Jairo, nem a ressurreição do próprio Jesus. "Mostre-me o teu Deus", Autólico exigiu dele, e isto parece ser o melhor que ele pode fazer.

Atenágoras de Atenas

O Apelo em Favor dos Cristãos de Atenágoras foi escrito em torno da mesma época e segue em muito as mesmas linhas de Teófilo. Em trinta e sete capítulos, ele discute em detalhes minuciosos o conceito do Logos, o Filho inato de Deus e agente da criação, mas nenhuma vez sequer ele menciona que os cristãos acreditam que esta Palavra divina veio para a terra em um corpo humano e uma vez chamou-se de Jesus. Não há citação de uma morte sacrificial, nem menção a uma ressurreição; ele também crê que a salvação vem puramente através do conhecimento do Logos. "se eu entrar em minúcias nos pormenores de nossas doutrinas", ele diz, "que isto não o surpreenda" - então por que ele nunca menciona o Jesus homem?

Tatiano

Escrevendo em torno de 160, a obra Aos Gregos de Tatiano estimula seus leitores a voltar-se para a fé cristã. Assim como Teófilo e Atenágoras, ele gasta muito tempo descrevendo o Logos, mas nunca se refere explicitamente a qualquer encarnação, nem menciona o nome Jesus, e afirma que a salvação vem através do conhecimento de Deus. Ele mais tarde rompeu com o cristianismo mainstream, juntando-se a uma seita herética, e compôs uma harmonia (uma síntese combinada) dos quatro evangelhos canônicos chamada o Diatessarão. Isto pode indicar que ele mudou suas crenças, ou pode significar algo mais; o tópico dos evangelhos e como Tatiano e outros possam tê-los visto será discutindo em mais detalhes adiante.

Minúcio Felix

E finalmente chegamos ao último dos apologistas a serem discutidos aqui, a "bala de prata" se é que há alguma. O Otávio de Minúcio Felix, escrito entre 150 e 200, assume a forma de um debate imaginário entre Otávio, um cristão, e um personagem pagão chamado Cecílio.

O Cristianismo de Minúcio Felix, como apresentado por Otávio, é ainda mais incomum do que o retrato dado pelos outros apologistas. Ele discute longamente o Deus monoteístico sem jamais mencionar Jesus, ou sequer o conceito do Logos. Quando Cecílio desafia Otávio, "Quem é que já retornou dos mortos... que possamos acreditar como um exemplo?", Otávio falha em dar a mais óbvia de todas as respostas, ou sequer resposta alguma.

Mas este não é o verso "bala de prata". No capítulo 9, Cecílio ataca os cristãos com uma longa lista de calúnias: é dito que eles fazem sexo grupal em cada reunião; que adoram a cabeça de um burro ou os órgãos genitais de seus padres; que eles matam e comem bebês em seus rituais, e assim por diante. Cecílio também diz isto:

"E dizem alguns que os objetos de sua adoração incluem um homem que sofreu a morte como um criminoso, bem como a infeliz madeira de sua cruz; estes altares são apropriados para esses depravados, e eles adoram o que merecem."

Relembre, Minúcio Felix, um cristão, está escrevendo esta passagem. Ele acabou de incluir o dogma central em torno do qual o Cristianismo se baseia, no meio de uma lista de ridículas e nojentas acusações falsas contra sua religião. Como ele faz Otávio responder?

A primeira resposta de Otávio é apontar que os pagãos crêem em coisas similares sobre deuses encarnados, mas ele não traça paralelos. Em vez disso, ele ridiculariza estas crenças. "Portanto os deuses não são feitos nem de pessoas mortas, já que um deus não pode morrer; nem de pessoas que nascem, já que tudo que nasce um dia morre", ele diz. Deuses não podem ser feitos de "pessoas que nascem"? Deuses não podem morrer? Onde está a exceção crucial? Onde está a qualificação essencial que nenhum cristão poderia possivelmente ter deixado de fora? Mas Otávio não tem nada assim para oferecer.

Mas isso fica ainda melhor. Otávio então prossegue e ataca as afirmações específicas de Cecílio, e no capítulo 29 ele diz isto:

"Estas coisas infames não devemos nem nos dar a liberdade de ouvir; é vergonhoso até mesmo nos defendermos de tais acusações. Pois você finge que essas coisas são feitas por pessoas castas e modestas, no que não devemos acreditar de forma alguma que sejam, ao menos que você provasse que elas são verdadeiras no que dizem respeito a vocês. Pois ao atribuir a nossa religião a adoração de um criminoso e sua cruz, você vagueia para longe das cercanias da verdade, ao pensar que um criminoso ou mereça, ou que um ser terreno possa, ser acreditado como Deus." (ênfase minha)

O significado deste verso não poderia ser mais claro. Otávio está negando que os cristãos adoram um homem terreno crucificado. Não há ambigüidade sobre isto. Ele não deixa nenhuma qualificação salvadora, nenhuma exceção, e em lugar nenhum ele diz que o homem que adoram não era um criminoso, mas sim inocente, e o Filho de Deus. Ele não diz nada nem remotamente similar a isso. De fato, na última frase ele diz curto e grosso que nenhum ser terreno de qualquer tipo poderia ser possivelmente acreditado como sendo Deus. Sem fazer quaisquer exceções ou qualificações, ele segue adiante para refutar a acusação de que cristãos matam e comem bebês.

Certos comentadores cristãos, incapazes de acreditar na clara evidência do texto, têm tentado afirmar que Felix estava de fato implicando que os cristãos adoram um Jesus humano e crucificado, ainda que nada que ele escreveu sequer sugira isso, e na verdade ele o nega veementemente. (a tradução dos Padres Antenicenos dá a este capítulo o título: "Argumento: Nem é Mais Verdadeiro que um Homem Preso a uma Cruz por Conta de Seus Crimes Seja Adorado pelos Cristãos, Pois Eles Acreditam Não Só que Ele Era Inocente, Mas que com Razão Ele Era Deus". Como é que eles entenderam isso do texto? Felix não diz nada assim. Os tradutores estão extraindo dos versos o que eles pensam que deveria estar lá.)


Ao tentar explicar estes silêncios do Cristianismo inicial, até mesmo a negação direta no caso de Felix, do Jesus histórico, os apologistas modernos têm recorrido a algumas estratégias realmente implausíveis. A mais comum é afirmar que os apologistas antigos, essencialmente, achavam que o seu público acharia a doutrina da encarnação forçada demais para defender, então eles não tentavam defendê-la.

Mas considere as implicações disto. É pra gente realmente acreditar que os apologistas da antiguidade imediatamente abandonaram a doutrina mais importante e significativa de sua religião inteira face à crítica? Algum evangelista moderno faz isto? Afinal de contas, como os cristãos de hoje com certeza seriam os primeiros a insistir, sem a encarnação não há Cristianismo. Se eles não vão defender a própria coisa na qual sua religião se baseia, então pra que sequer escrevê-la?

O trabalho de Atenágoras foi escrito para o imperador em uma tentativa de parar com a perseguição e o assassinato de cristãos. Em quanto mais de fúria eles iriam incorrer se o imperador mais tarde descobrisse que estivera o tempo todo mentindo sobre a base fundamental de sua religião? De forma similar, muitos dos outros evangelistas estavam escrevendo especificamente para converter outros. Mesmo concedendo que eles fossem receosos de defender a encarnação, o que há de bom em converter outros a uma falsa fé que traz pouca semelhança ao Cristianismo real? Após conquistar um pagão, irá um destes apologistas mais tarde trazer ele a um canto e dizer "ah é, esqueci de mencionar isto antes", e então soltar uma bomba que altera fundamentalmente toda a estrutura de crenças que ele trabalhou tanto para construir? Não, é um absurdo acreditar que os apologistas antigos faziam isto. Se deixarmos suas obras falarem por si mesmas em vez de encaixá-las à força em pré-conceitos do evangelho, a conclusão óbvia é que estes homens debatiam assim porque eles genuinamente não acreditavam em um Jesus Cristo histórico. Eles acreditavam em um Logos, mas eles jamais concebiam este Logos como tendo estado na Terra.


Mas mesmo que se aceite esta conclusão, há uma pergunta óbvia: por que os evangelhos? Se o Cristianismo não começou com um fundador humano, por que os evangelhos foram escritos em primeiro lugar, e como a crença neste fundador cresceu até o pensamento cristão em sua corrente principal?

Não há evidências definitivas para encerrar esta questão, então qualquer conclusão sobre este assunto deve permanecer experimental. No entanto, há algumas dicas intrigantes.

Ainda que Minúcio Felix claramente não acreditasse em um salvador encarnado que se submeteu à crucificação, o fato de que ele tenha refutado esta acusação em seu livro demonstra que alguém estava atribuindo esta crença aos cristãos. Da mesma forma, enquanto que o Aos Gregos de Tatiano jamais discuta sobre Jesus ou a encarnação em qualquer extensão, há uma frase que claramente alude a estas idéias. "Nós não somos tolos, homens da Grécia, quando declaramos que Deus nasceu em forma de homem", ele escreve. (Esta é a única referência em qualquer lugar de seus trabalhos para qualquer coisa que possa ser a história do evangelho, e ele não se aprofunda nisso). "Dê uma olhada em seus próprios registros", ele prossegue, "e aceitem-nos simplesmente pelo fato de que também contamos histórias."

Talvez isto signifique que a história do evangelho era familiar a Tatiano. Talvez. Mas se ele realmente sabia dela, se realmente acreditava nela, então por que ele não gastou mais tempo discutindo-a? Ele estava escrevendo para converter os gregos, e enquanto ele discute o Logos longamente, o comentário de passagem acima é a única coisa no livro que sequer sugere a encarnação. Pode-se perdoar alguém que pense que Tatiano está fazendo um péssimo trabalho em apresentar o Cristianismo aos pagãos, considerando que ele tenha deixado completamente de fora o elemento definidor central da fé. De fato, ele parece quase denegri-la. Quando ele diz para "nos aceitar simplesmente pelo fato de que também contamos histórias", é como se ele considerasse a encarnação como uma lenda ou um mito, não superior aos mitos gregos de Hércules, Aquiles e assim por diante. É quase como se ele tivesse ouvido a história do evangelho, mas a considerasse somente um adendo recente, de forma alguma essencial à fé cristã.

E se esse fosse exatamente o caso?

Assuma que, como argumentado acima, o Cristianismo inicial tenha começado com a crença em um Cristo puramente espiritual, um redentor divino, e que também tivesse um conjunto de ensinamentos éticos derivados das escrituras judaicas e da filosofia grega. Este era o Cristianismo de Paulo e dos outros primeiros escritores das epístolas. Postular que o movimento começou dessa forma explicaria muito, como dito anteriormente; explicaria por que as epístolas não parecem ter consciência da história do evangelho, por que elas discutem a morte de Jesus extensivamente, mas jamais a localizam em qualquer ponto ou momento terreno, e por que elas nunca descrevem seus milagres ou dão qualquer detalhe biográfico sobre sua vida além daqueles já conhecidos das profecias do Velho Testamento. Também explicaria por que as epístolas citam ensinamentos éticos bastante similares àquelas dos evangelhos dezenas de vezes, mas nunca, nem uma vez sequer, as atribuem a Jesus. Ensinamentos tais como "amar uns aos outros", "dar a outra face", "orar por quem o amaldiçoa" e assim por diante, que eram o núcleo dos sermões de Jesus, são repetidos várias vezes nas epístolas, mas nenhum escritor da epístola, nenhum sequer, lhes dá uma atribuição como "como o próprio Jesus nos ensinou". Normalmente estes provérbios são simplesmente repetidos sem atribuição. Ocasionalmente eles são atribuídos a Deus, i.e., o Deus Pai. Jamais qualquer escritor da epístola diz que estes são ensinamentos de um ser humano recente. Sob esta teoria, isto deveria ser esperado.

Esta foi a forma que o Cristianismo assumiu pelas primeiras décadas de sua existência. Agora, em algum ponto após 70 CE, suponha que acrescentemos à mistura um escritor anônimo. Chame-o de Marcos. Este Marcos pegou estes provérbios, combinou-os com a tradição paulina do Cristo cósmico tal como detalhado nas epístolas, e escreveu algo inteiramente novo. Esse documento, é claro, foi o primeiro evangelho, o Evangelho de Marcos.

Por que Marcos resolveu fazer isto jamais se saberá com certeza, mas a razão mais provável é que ele estava escrevendo uma alegoria religiosa - uma história projetada para ensinar e instruir através de lições e parábolas sobre uma lendária figura fundadora. Existe precedente para isso: o Judaísmo tinha uma técnica exegética bem estabelecida chamada de midrash, a qual envolvia tomar diferentes versos das escrituras e tecê-los juntos para formar novas histórias e extrair novas conclusões. Quaisquer que fossem as razões de Marcos, é muito provável que o documento que ele escreveu originalmente fosse ficcional, e que pretendia que o fosse. Pessoas que o lessem teriam entendido que não era pra ser tomado como uma narrativa histórica real.

O Cristianismo primitivo foi um movimento diversificado, e ao longo do tempo esta história iria gradualmente ingressar na consciência cristã. No início, as pessoas provavelmente entenderam seu propósito desejado e não o viram como um elemento central de sua religião, mas em vez disso como uma fábula instrucional. Você poderia aprender algumas coisas sobre o Cristianismo ao lê-la, mas lê-la não era necessário para ser um cristão. Poderia muito bem ser a isto que escritores como Tatiano e Minúcio Felix estavam se referindo; ainda que tivessem ouvido esta história, eles a consideraram um adendo recente, apenas acessório à fé. Eles até pareciam vê-la com algum desdém. Era a doutrina do Logos, o Cristianismo cósmico paulino, no que eles realmente acreditavam e em que estavam focados em pregar aos gregos e outros.

Ao longo do tempo, à medida que a nova religião evoluía e se fragmentava em seitas, outros escritores foram atrás deste conto alegórico e o retrabalharam para passar suas próprias mensagens e encaixá-lo nas perspectivas de suas próprias comunidades (se esses escritores nesse momento já acreditavam ou não que a história original era literalmente verdadeira é uma questão em aberto). O resultado foi Mateus, Lucas e João, bem como uma proliferação de outros evangelhos não-canônicos.

A única pergunta que permanece, então, é: em que ponto os cristãos perderam vista do fato que estes evangelhos não se pretendiam ser narrativas históricas. Como este fato se esvaiu de suas consciências?

Um elemento que contribuiu a isso pode ter sido a Guerra Judaica do fim do século I, quando Roma decidiu por um fim ao desafio judeu de uma vez por todas ao marchar para Jerusalém, conquistando a cidade e incendiando totalmente o Templo. Esta foi uma enorme sublevação, matando uma porcentagem significativa da população de Israel e espalhando os sobreviventes aos quatro ventos. Após tal catástrofe, a qual quase que certamente iria implicar em ampla devastação e na perda de muitos registros, ninguém estaria em uma posição de refutar uma história sobre mais um pregador messiânico naquela área décadas atrás - não restaria ninguém que pudesse dizer com certeza que aquela estória não era histórica. O tempo por si só pode ter sido outro fator, à medida que os autores originais morreram e mais tarde os cristãos esqueceram seus propósitos iniciais.

O ponto principal é que, eventualmente, em algum ponto e por alguma razão, os cristãos realmente esqueceram o propósito original dos evangelhos, vindo a crer por engano que eles eram representações de eventos históricos, e começaram a vê-los como primordiais, tomando precedência sobre as epístolas das quais originalmente surgiram. À medida que a igreja crescia, formalizando o dogma cristão e assimilando ou varrendo outras seitas, quaisquer obras que preservassem o propósito original dos evangelhos eram vistas como heréticas e seriam destruídas. Tudo o que resta é extrair os evangelhos das epístolas, assumindo que ambos foram originalmente escritos para descrever o mesmo conjunto de crenças, e daí nasce então o Cristianismo moderno.

Isto é um afastamento significativo do pensamento da corrente principal, pra dizer o mínimo. No entanto, existem evidências para isto além de umas poucas linhas das obras dos apologistas do século II. Evidências sugerindo o propósito original dos evangelhos podem ser encontradas nos próprios evangelhos.


O Jardim de Getsêmani

Considere a cena do Jardim de Getsêmani. Todos os sinóticos contam esta história basicamente da mesma forma (João, que não deseja retratar Jesus como passível de momentos de fraqueza humana, a omite). É a noite da prisão de Jesus, a noite antes de ser crucificado, e pela primeira vez na sua vida ele sente preocupação, até mesmo medo, sobre o que está para vir. Em um jardim chamado Getsêmani, ele deixa a maioria dos discípulos para trás, levando com ele apenas Pedro, Tiago e João, e os instrui para protegê-lo enquanto ele sai para orar. Isto ele faz, mas ao retornar, ele encontra os três cansados discípulos dormindo. Isto ocorre mais duas vezes, para efeito retórico, e então Judas chega com os soldados judeus para prendê-lo. A história é contada no capítulo 14 de Marcos e espelhada em Mateus 26 e Lucas 22.

O problema é este. Os próprios evangelhos dizem que enquanto Jesus estava orando em Getsêmani, ele deixou para trás todos os discípulos exceto Pedro, Tiago e João - e esses três estavam dormindo enquanto ele orava. Em outras palavras, ninguém estava cuidando ou ouvindo Jesus enquanto ele orava lá. Mesmo assim os evangelhos alegremente registram esta cena como se não houvesse problema algum! Como é que isto é possível? Quem foi que escreveu isto?

Os judeus vão até Pilatos

O mesmo problema ocorre novamente no fim de Mateus 27, versos 62 a 66. De acordo com o evangelho, os sacerdotes e os fariseus foram até Pôncio Pilatos em segredo, pedindo a ele que pusesse guardas na tumba para impedir os cristãos de roubar o corpo de seu mestre. Novamente, como é possível que isto sequer tenha parado nos evangelhos? Quem é que estava registrando isto? Certamente nenhum dos discípulos ou seguidores de Jesus estavam presentes nesta cena.

A Tentação de Jesus pelo Demônio

E novamente, em outra famosa história do evangelho, vemos os evangelistas registrando informações sobre a vida de Jesus as quais eles não tinham como ter acesso. Depois do seu batismo, Jesus dirige-se ao deserto para jejuar por quarenta dias e é tentado por Satã, que lhe oferece poder e domínio. Novamente - quem é que registrou isto? Será que um evangelista foi recrutado no deserto? E mais, deve ter sido mais de um evangelista, porque enquanto que o Evangelho de Marcos foi o primeiro a ser escrito, os outros registram detalhes sobre esta cena que ele não registra. E mesmo assim isto é impossível, porque de acordo com os sinóticos, Jesus nem sequer escolheu seus discípulos até depois da tentação ter acontecido.

A Conspiração Entre os Guardas e os Sacerdotes

Novamente, em Mateus 28:11-15, vemos um evangelho registrando, sem dificuldade alguma, coisas que nenhum dos seguidores de Jesus estariam lá para testemunhar. Neste caso é uma conspiração entre os padres do templo e os guardas a postos na tumba de Jesus, depois da ressurreição, quando os padres subornaram os guardas para dizerem que os discípulos roubaram o seu corpo. Será que Mateus estava presente para ouvir isto? De novo, como é possível que qualquer evangelho registre coisas que nenhum dos escritores do evangelho pudesse ter visto?

E a lista segue e segue. Mateus 27:19 escreve uma mensagem em particular que a esposa de Pilatos enviou a ele. Mateus 27:3-8 descreve como Judas devolveu seu dinheiro de sangue para os sacerdotes e então se enforcou pela culpa. (será que ele deu uma passadinha rápida antes disso para se confessar aos outros discípulos?). Lucas 7:39 nos conta o que um fariseu estava pensando.

Isto não podem ser pedaços de informação aos quais os escritores do evangelho pudessem ter tido acesso. No entanto, se assumirmos que eles estavam simplesmente escrevendo uma história fictícia, usando a forma de narração onisciente em terceira pessoa, esta dificuldade se evapora.

O óbvio contra-argumento cristão é que os evangelistas podiam ter sabido dessas coisas através de revelação, mas há uma resposta a isto. Supostamente, na interpretação tradicional, os evangelistas estavam em cena para testemunharem pessoalmente a maioria dos eventos sobre os quais escreveram. Mesmo assim estas outras partes, estas pequenas revelações, estão espalhadas ao longo de todos os seus textos sem qualquer indício de tom ou contexto, de forma que qualquer coisa sobre elas difere do resto dos eventos os quais estão recontando. Se algumas coisas que escrevem são coisas que testemunharam diretamente, enquanto que outras são revelações milagrosas da divindade, eles não deveriam fazer essa distinção? Não deveriam acrescentar uma nota do autor no texto para avisar ao leitor a diferença? Esta não é uma sugestão despropositada - Paulo faz exatamente isto em 1 Coríntios 7, claramente fazendo a distinção entre o que é um mandamento de Deus e o que é sua própria crença. Por que os evangelistas não fazem isto? Por que Paulo sente que isto é necessário mas eles não? De fato, Lucas parece descartar esta possibilidade ao nos dizer logo nos primeiros versos de seu evangelho que o que ele está prestes a recontar deriva de testemunhas oculares. Em lugar nenhum ele menciona que parte disso também surgiu sob a forma de revelação direta. Parece uma omissão significativa, sem contar que é um insulto a Deus, receber conhecimento dele milagrosamente e então apresentá-lo a todos como algo que você mesmo viu acontecer.

Além disso, se esta ideia de revelação é de fato o que aconteceu, parece uma certeza próxima que os evangelistas teriam que incluir este fato em seus escritos. A objeção de que "você não estava lá para ver isto" certamente teria sido uma das reclamações mais comuns feitas contra o Cristianismo primitivo, e isto teria sido apoiado pelos eventos registrados pelos evangelistas que eles próprios não testemunharam. A única defesa seria explicar como eles toparam com essas informações, e mesmo assim nenhuma defesa é oferecida.


Concluindo, então, o que temos? Um corpo de epístolas cujos escritores aparentemente não conheciam a história do evangelho. Um grupo de apologistas do século II que parecem sentir que podem apresentar um retrato completo do Cristianismo sem mencionar qualquer encarnação; de fato, um deles a nega veementemente. Um conjunto de evangelhos que são escritos no estilo de uma história fictícia, apresentando informações às quais seus autores não teriam como ter acesso. E, por último mas não menos importante, uma completa falta de evidência confiável de primeira mão para qualquer homem como Jesus Cristo.

Muitas críticas da teoria do Jesus-mito tendem a não pegarem a idéia ao assumirem que o caso para esta conclusão está construído simplesmente sobre uma falta de evidências para tal pessoa. Isto não é verdade. De fato, esta teoria é também fundada sobre evidência positiva, tal como os versos apresentados nesta seção - versos que, quando não lidos sob a luz do pressuposto, mostram que o Jesus a quem os primeiros cristãos adoravam não era um ser humano histórico. No entanto, para sustentar isto, as supostas referências históricas a tal pessoa devem primeiro, naturalmente, ser removidas do caminho, como a parte 2 deste ensaio argumentou; e além do mais, é perfeitamente legítimo apontar que temos todo o direito de esperar alguma referência extra-bíblica se realmente houvesse uma pessoa que fizera as coisas que os evangelhos disseram que fez, como a parte 1 estabeleceu.

Estas várias linhas de evidência convergem em somente uma conclusão: o Cristianismo não começou como uma resposta a um homem histórico. Em vez disso, o Cristianismo primitivo foi uma tradição diversificada, originalmente consistindo de uma variedade de elementos não relacionados - sabedoria helenística, expectativa apocalíptica e messiânica judaica, filosofia platônica, a Sabedoria Judaica, elementos gnósticos e das religiões de mistério, e o Filho de Deus cósmico e os evangelhos alegóricos - que amalgamaram apenas gradualmente em uma expressão mais unificada, eventualmente solidificando-se em uma única igreja. Em algum ponto, esta igreja agarrou-se a uma linha particular que se desenvolvera dentro do movimento - Jesus como homem histórico - e declarou-a como dogma, derrubando seitas competidoras e erradicando elementos heréticos, e reescrevendo a história através das lentes de sua própria nova interpretação. (o livro de Atos é o exemplo canônico, retratando do jeito que retrata Paulo como um seguidor do Jesus histórico e subserviente aos apóstolos de Jerusalém, mesmo quando suas próprias cartas mostram que ele não era nenhum dos dois). É esta lente sob a luz do evangelho que sobreviveu aos dias de hoje, colorindo as pré-concepções dos cristãos da era moderna e fazendo com que eles extraiam das epístolas e do registro histórico coisas que simplesmente não estão lá.

Mas quando deixamos de lado essas pré-concepções e lemos os documentos do Novo Testamento pelo que estão realmente dizendo, sua mensagem é fácil de discernir. O Cristianismo tem sido elaborado sob um equívoco de suas próprias origens por mais de dois mil anos. É hora de reconhecermos isto, e uma vez que o façamos, a humanidade estará um passo mais próxima da liberdade e da iluminação do ateísmo.

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